Wednesday, October 28, 2009

NEM LIVRE, NEM JUSTA

Um dos objetivos fundamentais da República, diz a Constituição, é construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I).

Nossa sociedade está cada vez menos livre. Justa e solidária? Se não é livre, não pode ser justa, nem solidária.

Liberdade, meu tema recorrente.

Apesar de a República Federativa do Brasil ter uma lei suprema que prioriza a cidadania, ao invés da autoridade, sendo libertária em todos os sentidos, assistimos, nos últimos 21 anos, a uma escalada liberticida por parte da sociedade e do Estado. Exemplo disso é a Lei Antifumo do Serra, que tanto já comentei.

A fim de combater a criminalidade, leis liberticidas e, às vezes, desumanas, são promulgadas e guardadas pelo Poder Judiciário, como é o caso da lei que institui o RDD - Regime Disciplinar Diferenciado nos presídios. Um dos pontos do RDD: o preso não pode ler jornal e há uma lista de livros proibidos!

As restrições à publicidade que ultimamente têm sido impostas têm natureza de verdadeira censura, para a qual não encontro respaldo no texto constitucional. Exemplo de um desses absurdos: nas campanhas publicitárias de bebidas alcoólicas, os modelos devem aparentar ter mais de 25, isso mesmo, vinte e cinco anos (!), quando a idade mínima para o consumo de tais produtos corresponde aos 18 anos completos...

E, agora, querem a proibição da publicidade com apelo infantil...

Por outro lado, publicidade com apelo machista (e a Constituição expressamente proscreve o preconceito de sexo) logicamente, ninguém quer restringir.

O jornal "O Estado de São Paulo" está há dias sob censura, proibido, por decisão judicial, de veicular notícias sobre o filho do Senador José Sarney. Muitas decisões judiciais proibiram, em várias localidades, a realização da "Marcha da Maconha", que nada mais é do que uma manifestação que simplesmente defende uma idéia, tese, convicção filosófica (inviolável, segundo a Constituição), qual seja, a descriminalização da maconha. Censura. Concordemos ou não com esse ponto-de-vista, quem o sustenta tem o direito de expressá-lo.

Outro exemplo de liberticídio é o "toque de recolher", imposto, em algumas comarcas, a menores de 18 anos, por juízes de direito. Liberticídio sem respaldo algum na Constituição, que garante a todos o direito de ir e vir, em tempos de paz. Felizmente, quanto a essa posição, estou na companhia de Damásio Evangelista de Jesus.

Tramita no Congresso um Projeto de Lei que disciplina a internet, cria novos tipos penais (crimes), e obriga os provedores a armazenarem todas as informações referentes aos acessos dos usuários durante um certo período de tempo, se não me falha a memória, durante 3, três meses. O Projeto, apresentado pelo tucano Eduardo Azeredo (tinha que ser do PSDB, se bem que o PT não é imune à doença do autoritarismo), foi alcunhado "AI-5 Digital". Ou seja: tudo o que você pesquisar no Google fica armazenado, todas as páginas que você visitar... O que isso possibilita? Que LEIAM seus pensamentos! Sua mente será VIGIADA!

A Constituição guarda a liberdade de convicção e de crença, de manifestação do pensamento, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Não cuidou, em 1988, de guardar a INVIOLABILIDADE DO PENSAMENTO, porque, até então, INEXISTIA tecnologia que possibilitasse a violação, a devassa do pensamento. Hoje, há.

Quando você lê um livro, um jornal, folheia um álbum de fotografias, uma revista, ninguém guarda registro desse ato, a menos que o(a) filmem. E, se o(a) filmarem, você saberá que foi filmado(a). De qualquer modo, NINGUÉM saberá porque e para que você fez a consulta, o que você estava procurando. Ao navegar na internet, porém, é diferente.

Ao navegar na internet, a máquina está "pensando junto" com você, que transforma a internet em extensão do seu pensamento. E a internet é uma tecnologia que permite o armazenamento das páginas visitadas, e com que frequência. Imaginem só os seus acessos caindo nas mãos erradas! De um inimigo! Do Estado! Enfim, de quem quer que seja!

O direito de pensar livremente, de procurar informações, e sem sofrer qualquer constrangimento, é um direito absoluto. Na dogmática jurídica, temos o aforismo, "não há direitos absolutos". Há, sim. Pensar, sentir, sonhar, desejar, fruir, são direitos absolutos, porque derivam da relação do ser humano com ele mesmo, e com mais ninguém.

Pensar, sentir, sonhar, desejar, fruir, são fenômenos do corpo, da alma e da mente da pessoa, e por isso, invioláveis. Armazenar os acessos de alguém às páginas da internet é violar seus pensamentos, e, quiçá, desejos, sonhos, curiosidades, fontes de prazer. Ninguém discorda do direito absoluto que uma pessoa tem de guardar pensamentos para si, e não dividi-los com ninguém mais.

Por que tudo isso? Porque, em nosso tempo, cresce a cosmovisão de que a liberdade é um mal, do qual decorrem todos os demais. Então, é preciso proibir o máximo de condutas possível . Proibir para prevenir, vigiar para proteger. Ter prazer é atitude suspeita, hedonismo, politicamente incorreto, e a irreverência que questiona e derruba tabus, molecagem. Ah, sobrou pro amor. Romântico? Brega, imaturo, ultrapassado... Paixão? Doença. E dá-lhe psicoterapia e psicotrópico.

E, numa sociedade assim, o que é imoral torna-se ilegal, embora ninguém seja obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei (art. 5º, I da Constituição).

Mas, Simone Andréa, quando é que você pensa que teremos uma sociedade livre? As pessoas não estão folgadas demais?
Não é a liberdade que torna algumas pessoas folgadas, mas a falta de orientação, de educação (não vou repetir o tema), de cultura, de elegância, de sensibilidade, de arte, e, no caso dos homens, de liberdade: da liberdade de dizer "não" ao padrão agressivo e grosseiro de masculinidade que lhes é imposto. Ai do homem que se atreve a ser diferente! Homem vaidoso? Delicado? Fica "falado", como se diz em Sorocaba.

Teremos uma sociedade livre quando uma mulher puder manifestar, publicamente, desejo, amor, paixão, enfim, qualquer sentimento do gênero, por um homem, e ser respeitada; quando uma mulher puder chegar solitária numa festa, cerimônia, bar, restaurante, boate, sem que homem algum creia que ela tem obrigação de aceitar sua companhia, só porque ela está desacompanhada; e, agora, rendo-me à Danuza Leão, que certa vez escreveu: a mulher será livre no dia em que puder pedir um homem em casamento. Ainda não pode. Aquela que pediu e foi bem-sucedida, por favor, avise-me, sobretudo se pediu um homem que nem era seu namorado!

Teremos uma sociedade livre quando falar certas palavras deixar de ser tabu, quando as pessoas pararem de esperar postura grave (e reprimida) de autoridades e de ocupantes de determinados cargos (não estou contra a ética, obviamente, mas, sim, contra a pompa e circunstância, o moralismo reprimido e repressor, a hipocrisia), quando abolirmos o cerimonial no trato com tais pessoas, afinal, numa República, não há nobreza, portanto, "Sua Excelência" é tratamento que deveria ter deixado de existir HÁ CENTO E VINTE ANOS ATRÁS! "Excelência" era a forma de tratamento dada aos nobres do Antigo Regime, duques, marqueses, condes, viscondes, barões. Mais medieval, impossível.

Teremos uma sociedade livre quando o corpo e o sexo deixarem de ser tabus, quando um senador não for importunado porque desfilou de sunga vermelha, sobre a calça ou sobre a pele, no saguão do Congresso (vida longa para o Senador Suplicy); quando posar nu, ou nua, deixar de ser privilégio de artistas e atletas, mas ato reconhecido como exercício regular de direito (que o é, disso, não tenho dúvida) a empresários, jornalistas, políticos, advogados, funcionários públicos, trabalhadores em geral, que não sofrerão qualquer sanção por isso.

Agora, um sonho. Um dia, quero abrir a edição brasileira da "PLAYGIRL" (que eu saiba, ainda não existe) ou similar, e em sua capa ler, "DESPIMOS O JUIZ/PROMOTOR/DEPUTADO/SENADOR/PRESIDENTE/MINISTRO/GOVERNADOR", ao lado da foto do rosto do glorioso senhor, tirada à meia-luz, e ele lá, lindo e loiro, moreno, ruivo, grisalho, ou calvo, com um sorriso bem sensual. E, ao ler a revista no meu quarto cor-de-rosa, uma surpresa maravilhosa: ele desfilando nas dez ou vinte páginas da matéria, só de meias e sapatos, quando muito de relógio, ou de óculos, se os usar... quem sabe, com uma capa preta... porque seremos uma sociedade livre, realmente, quando um magistrado, de preferência de alta corte, em pleno exercício do cargo, puder posar nu, sem consequência alguma, além dos suspiros (ou das caretas, nunca se sabe) das mulheres.