Monday, August 03, 2009

Semana Mundial da Aporrinhação

Começou ontem, 01.08, mais uma Semana Mundial da Amamentação, promovida, entre nós, pela Sociedade Brasileira de Pediatria, com a adesão do governo.
Este ano, a madrinha da campanha é a cantora Cláudia Leitte, aquela mesma que disse, no ano passado, que não gostaria de ter um filho homossexual. Para uma mãe ou um pai, que diferença faz a orientação sexual dos filhos?
Muito bem. Semana Mundial da Amamentação é a Semana Mundial da Aporrinhação Liberticida e Machista.
O que é que tenho contra a amamentação? Nada, nada, nada.  Mas saibam todos que é ato de livre decisão, iniciativa, preferência e possibilidade da mulher. Porque se trata de um direito, e não de uma obrigação.
Ah, mas não há alimento mais perfeito... ah, mas é um ato de amor... ah, mas por que uma mãe iria se recusar a amamentar?
A Sociedade Brasileira de Pediatria e alguns políticos querem impor a idéia de que a amamentação é dever da mãe. Isso é um ponto-de-vista machista, porque trata o corpo da mulher como se não fosse dela, mas da família, do Estado e da sociedade. Assim, se a mulher tem seios, pariu um filho e está produzindo leite, tem "obrigação" de dar leite e essa é sua principal função enquanto o bebê mamar. Afinal, já que o ser humano é mamífero, a mulher tem que "obedecer à Natureza" e sujeitar-se às suas consequencias, comportando-se como qualquer fêmea de uma espécie mamífera. 
Machista, porque parte do princípio de que a liberdade da mulher  é menor do que a do homem. Segundo esse ponto-de-vista, a mulher, por conta de sua "organização física", de sua "função", deve ter mais encargos, mais obrigações, e menos autonomia física. Em outras palavras: menos direitos e mais deveres. 
Ninguém pensa em levar em conta o que as mulheres pensam, sentem e vivem a respeito do assunto. Aliás, ninguém quer levar em conta o que as mulheres pensam, sentem e vivem a respeito de nada! Essa é a crudelíssima verdade, ainda não destruída, comme il faudrait.
Machismo é tratar a mulher, mais uma vez, como coisa, rez, gado fornecedor de alimento; trata seu corpo como coisa alheia, da família, do Estado, da sociedade, e não como coisa própria, da própria mulher; enfim, trata a mulher como objeto de consumo e ignora sua vontade, como se sua consciência não existisse e estivesse simplesmente proibida de existir!
O conhecimento, a religião, a arte e a política ainda são ditadura dos homens, que, unidos contra a mulher, deixam de ser de esquerda ou de direita, passando a atuar como centro: Centro do mundo.
E, assim, fomentam, juntos, mais uma ditadura contra a mulher, a ditadura da amamentação.
Foi essa expressão - "ditadura da amamentação" - que uma jornalista inglesa, Hana Rosin, utilizou num artigo em que denuncia o problema.
E, entre nós, uma médica, Iara Grisi, escreveu um artigo de tom liberticida, "É Preciso Amamentar Sim!"
O que eu tenho contra a amamentação? Contra a amamentação em si, nada! Quem já não imaginou a cena? Se tivesse um bebê, iria tentá-la. Afinal, não custa um centavo, já vem pronta e pode ser uma experiência muito agradável. Porém, mãe não é tudo igual. E nem bebê. Conheço mulheres que se deram muito bem com a amamentação. Outras, não. E não é a família, o médico, o Estado e nem a sociedade que vão dizer o que a mulher deve fazer ou deixar de fazer com o seu corpo e sua vida.
Como é que, num Estado que tem o pluralismo, vale dizer, o direito à diferença, como princípio fundamental, a mulher, só porque teve um filho, perde o direito de ser diferente, de nadar contra a corrente?
Simples: vivemos num mundo em que a mulher não é reconhecida como ser humano. Não é. Foi preciso um tratado internacional dizer, "os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais" (Declaração do Programa de Ação de Viena, resultante da Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, realizada em 1993), porque, sempre que se falava em "direitos humanos", quando se falava nos direitos das mulheres, sempre havia um senão, um mas, um exceto, como se o conceito de direitos humanos excluísse o Outro, as mulheres. Essa cosmovisão que dominou a Assembléia Nacional instalada com a Revolução Francesa, no sentido de excluir as mulheres dos direitos individuais e políticos, sob o argumento de que "a natureza" as tinha criado para outras finalidades. Entre aqueles deputados franceses de fins do séc. XVIII, houve, porém, uma voz dissonante, e muito bem articulada: Condorcet. Sim, era um homem.
Agora, um caso verdadeiro.
Era uma vez uma profissional da saúde de cidade do interior. Grávida, convencida da importância do aleitamento no peito, preparou-se para ele. Seu bebê nasceu, ela lhe ofereceu o seio, e... nada. O bebê simplesmente não queria mamar no seio dela. A médica impedia essa mãe de tentar oferecer uma mamadeira. Para o bebê não morrer de inanição, a receita da médica: soro fisiológico! A mãe em questão voltou ao hospital, para tentar resolver o problema. Ela chorava no banho, pois o leite escorria, ela tinha os seios roxos de tanto apertar, e o bebê, nada! Ela voltou ao hospital, para tentar resolver a situação. Todas as técnicas foram aplicadas, e, nada! As enfermeiras começaram a torturá-la, dizendo que, se o bebê não mamava, era porque ela não queria! E a médica na mesma toada...
Um dia, uma das tias dessa mulher foi visitá-la, viu o bebê magrinho (pois só recebia soro, de acordo com as ordens da "doutora") e disse à sobrinha: "você vai sim dar uma mamadeira a ele, o que é isso?" A tia (mãe de três filhos) trouxe a mamadeira, preparou-a e o bebê mamou. Hoje, é um mocinho. Poderia ter sido uma vítima fatal da ditadura da amamentação.
O ressurgimento da ditadura da amamentação coincidiu com a conquista, pela mulher, do mercado de trabalho, dos direitos civis (na Constituição e nas leis), da educação, dos anticoncepcionais, da queda na fecundidade. Era preciso, segundo o interesse dos machistas, por um freio nisso. Qual discurso poderia ser mais chantagista, mais intimidatório, do que o do "dever" de amamentar?
Ditadura da amamentação: sim, ela existe, e não sou a única a denunciá-la. Deem um google na expressão, e vocês verão que outras vozes a denunciam. Porque, para essa ditadura, as governadas não têm poder, não têm querer, não têm consciência e são proibidas de tê-la. E, para alcançar seus objetivos, que se resumem a manter as mulheres no cativeiro, vale tudo.